O Acidente

Dramaturgia, Texto e Canções Regina Guimarães

Encenação e Cenografia Igor Gandra

Música Carlos Guedes

Assistência de Encenação Carla Veloso

Interpretação Catarina Lacerda, Ivo Alexandre, José Pedro Ferraz e Julieta Rodrigues

Desenho de Luz Gil Rovisco

Produção Isabel Nogueira

Co-produção Teatro de Ferro, Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura e Festival Internacional de Marionetas do Porto

O Teatro de Ferro é uma estrutura financiada por Governo de Portugal, Secretaria de Estado da Cultura, Direcção-Geral das Artes

Espectáculo para maiores de 16 anos

Diário de bordo com três dias de ensaios e a cinquenta e tal da estreia.

Nestes três dias lemos e/ou relemos em conjunto umas partes de A doutrina de Choque da Naomi Klein, estamos também a rodar entre nós a ficção de projecto/museu O Sarcófago congeminada no início deste século pela dupla Bilal/Christine.Vimos e revimos o Stalker do Tarkovsky, cada um em sua casa, como convém. Todos juntos, picámos o The War Game do Peter Watkins no You Tube, por indicação expressa de R & S... acabámos - por contágio, propensão, ou outro problema qualquer deste grupo - por ir parar à Comuna de Paris, pelo mesmo Watkins. O traveling inicial pelo decor, apresentado pelo watkins junior, revelou-se mais inspirador do que seria de esperar.

(O modo e como se entra e sai da ficção – como os autores e os actores se dirigem directmente ao público...a estudar em ambos os casos)

Quando não estamos a ler, nem a ver filmes, ou estamos a discutir, ou a improvisar sobre uma série de materiais e objectos (no sentido matérico, propriamente dito), estes tanto podem ser rigorosamente seleccionados – como é o caso das colchonetes de campismo adquiridas numa conhecida cadeia de distribuição de consciência social, por menos de quatro euros a unidade – como achados ou perdidos no atelier, na sala de ensaios, no armazém.

Uma outra actividade tem ocupado uma parte importante do nosso tempo: inventar modos de cantar e dizer os textos-poemas que a Regina entretanto tem escrito para o rspectáculo, falam-nos da privatização generalizada de todos os aspectos da vida, de homens que fecham os filhos no quarto escuro para os castigar, das geometrias variáveis dos expedientes político-económicos, do regresso a novas formas de obscurantismo. Cantamo-los e dizemo-los ainda mal, mas como se não houvesse amanhã. Mas há. Amanhã há ensaio.

Texto 1

Sobre O Acidente...

O ACIDENTE assenta na ideia de descrever traços de uma macro-realidade através dos respectivos ecos numa micro-realidade. Para tanto, recorremos ao dispositivo do desastre aparatoso, da catástrofe de grandes proporções, palcos onde se cruzam desconhecidos perante aquilo a que a filosofia designa como «situação-limite», atribuindo-lhe um elevado potencial, ao nível da emergência de questões éticas e políticas. O teatro de operações construído com base nesse dispositivo será, de diversas maneiras, aberto à participação do público (ah,ah,ah, isso é que era bom). O ACIDENTE organizar-se-á como uma visita guiada ao local do sinistro acontecido ou a acontecer, ao epicentro de uma enigmática catástrofe. Neste museu morto-vivo, neste parque mais ou menos temático, o que parece é. É mais grave do que pode parecer à primeira vista, à primeira escuta.

Texto 2

No principio foram os coletes reflectores... Viajo de moto na auto estrada. Vejo na berma um pequeno acidente entre alguns veículos ligeiros. Por motivos de segurança - a minha própria e dos demais - e alguma curiosidade mórbida, abrando. Felizmente não há feridos, no máximo feridos ligeiros, como os seus veículos... Uma quinzena de cidadãos entre condutores e passageiros, talvez um pouco mais, apresenta-se em torno das viaturas amolgadas. Percorre-os um ar estranho, entre o medo e a revolta, a resignação e a expectativa. Uma boa parte destas pessoas enverga coletes verde fluorescente com bandas reflectoras de alta visibilidade. Todos aguardam a chegada e a intervenção das autoridades. Por um instante, com alguma imaginação, aquelas pessoas podiam estar a participar numa qualquer espécie de protesto político. Não, talvez não. Sigo viagem. Foi este acontecimento fugaz e particularmente a tomada de consciência do efeito que produz esta espécie de dress code (obrigatório por exemplo em acidentes e estaleiros de construção) que despoletou este processo de criação. O interveniente num sinistro e o operário partilham o mesmo figurino e a obrigação de sinalizar o seu corpo e a sua presença. O Acidente é um espectáculo. Um acidente é frequentemente o resultado de uma acumulação de erros e negligências. Um espectáculo é também uma sucessão, mais ou menos consciente, de tentativas de evitar uns e outros. Há sempre algo de espectacular no acidente e algo de acidental num espectáculo. Um espectáculo pode sempre ser um desastre, uma catástrofe, um sucesso.

Neros de trazer por casa, Heróstratos amadores e/ou apagados pagadores. Fomos chamados a apagar (e a pagar)os fogos ateados pelos pirómanos da alta finança, quais bombeiros involuntários. Este espectáculo é também um pretexto para pensarmos sobre o estado de excepção cada vez mais permanente, sobre o desastre e os seus responsáveis, sobre as oportunidades que se abrem, se criam para alguns (muito poucos) em cada catástrofe, em cada crise. Enquanto podemos, fazemos turismo ou viajamos em trabalho, fazemos de conta que não damos conta da humilhação a que somos sujeitos de cada vez que nos aproximamos de uma porta de embarque de um aeroporto. Neste espectáculo trabalhámos sobre essa névoa pegajosa que torna ténue a fronteira entre o cuidar e o oprimir.

Escutar e ser escutado... Em O Acidente regressamos à canção teatral e à palavra dita-cantada. Esta última consiste numa fórmula híbrida em que o texto é perscrutado também nas suas dimensões rítmica e melódica, na sua musicalidade interna e nas relações com a música.

A matéria e o corpo. Animação e reanimação. Primeiros e últimos cuidados... O Acidente inscreve-se na pesquisa marionetística que temos vindo a fazer sobre a ambiguidade entre o animado e o inanimado. Entre o vivo e o morto, ou o não vivo.

O local do sinistro. O refúgio. O memorial...